7 de janeiro de 2010

carta aos que ficaram

Pois é. Eu havia prometido enviar notícias com frequência. Lá se vão trezentos dias desde a minha partida e ainda não cumpri minha promessa. Não pensem que isso é descaso, nada disso. Eu poderia – deveria? – explicar, mas os amigos dirão que não precisa e os outros são do time que só escuta o que quer escutar.
As coisas aqui na Terra da Garoa não estão saindo exatamente como planejei, mas também não há motivo para pânico - é nos imprevistos que acontecem as situações que depois entram nas biografias.
Antes de encaixotar a mudança eu havia decidido quais coisas seriam fáceis e quais coisas seriam difíceis na minha vida nova. Quando estava me mudando, fui avisada de que as frustrações são do tamanho das expectativas e, pouco depois de eu ter me estabelecido aqui, a amiga que deu esse conselho veio me visitar. Ao telefonar para avisar que estava embarcando, ela perguntou o que faríamos à noite. Respondi “vamos a um ‘churras’ na casa de uns amigos”. Ela respondeu um “ah” meio desanimado e eu fiquei pensando qual seria o problema. Mais tarde, entendi: talvez ela esperasse algum programa mais... paulistano.
Fernanda Montenegro, em recente entrevista à Folha de São Paulo, falou lindamente sobre um determinado conceito de liberdade e arrematou com a pergunta “até onde você se aprisiona na sua consciência ou na sua neurose?” Ou seja, até que ponto você se mantém preso a um conceito que, evidentemente, não serve mais? Se o cenário está diferente do que você achava que deveria ser, está na hora de passar o projeto a limpo, cortar as arestas e se adaptar. Passado o primeiro susto, é hora de traçar caminhos possíveis.
As coisas óbvias de São Paulo me incomodam pouco: ah, o trânsito! Eu sabia que seria ruim, então me dispus às coisas piores. Claro que quando alguém se atrasa para um compromisso comigo por causa das quilométricas filas de engarrafamento, nem meditação resolve. Mas quando sou eu quem está presa nele, andando como quem leva um jaboti para passear, evito desperdiçar esse tempo: aproveito para ler, escutar uma música gostosa... e hoje, estou escrevendo.
Eu havia pensado que a poluição seria um problemão – sempre que eu estava de passagem, a danada fazia meu nariz doer – mas aconteceu que, na maior parte do tempo, nem a percebo. Triste notícia: me acostumei.
Pobreza me incomoda aqui, aí no Sul e em todos os lugares do mundo. Em alguns dias, me pego furiosa por achar que deveria estar ganhando mais e acumulando mais coisas, só para em seguida me sentir a mais frívola das criaturas ao perceber que tenho até demais, se comparada a alguns trabalhadores de rua. A sensação piora quando noto, um pouco envergonhada, que o quanto sou capaz de gastar numa única noite de boteco é mais do que eles acumulam em um dia inteiro. Nessas horas, lembro de ser um pouco mais grata à sorte que tenho.
Eu li em algum lugar que uma das maiores riquezas que um viajante pode encontrar em sua jornada é descobrir que o tesouro estava enterrado no quintal de casa. Concordo, se for porque um tesouro ficou aí; mas me reservo o direito de continuar cavando.
Simone de Beauvoir, em uma carta a Nelson Algren, disse que “Paris tem seu charme, desde que não se procure aqui por Chicago”. Decidi procurar por São Paulo em São Paulo - há de funcionar. Até por que o churrasco deles não se parece nem um pouco com o nosso.