22 de fevereiro de 2008

condições


Pensei muito em seu pedido, e vim lhe dar uma resposta. Mas antes, tenho algo a lhe dizer. Não, nada disso, é claro que eu te amo. Muito, você sabe. Acredito em seu amor, sim. Claro que acredito, meu deus. Deixa eu falar. Eu não disse que não, quero apenas que você me escute. É sobre as outras. Gosto da sonoridade dessa palavra, amante. Uma mulher folclórica vivendo no limbo, louca de vontade de dar, vestida com um esvoaçante negligé vermelho e calçando chinelinhos emplumados. Ninfa que, por baixo dos lençóis, vivencia céu e purgatório. O paraíso em ser a que sabe de tudo, a quem o canalha confiou o segredo de estar chifrando sua eleita. O inferno ao desperdiçar sua juventude, pois velha ela não é, aguardando que ele largue daquela megera insípida. E tem as crianças, o coitado morre se ficar longe dos filhos. É um pai maravilhoso, claro. Do topo ao subsolo, e às alturas novamente. Premissa básica para as gueixas é gostar de montanha-russa. Amantes são retrô. Nostálgicas, como os filmes da Sessão da Tarde - aqueles que passam no horário de escapar do escritório e dar um pulinho no motel. Após um feriadão interminável, as concubinas têm o horário comercial de segunda-feira. Mas passam dia dos namorados e noite de Natal espreitando o lar alheio, sagrado domínio das esposas. Esse delicado equilíbrio dura até o dia em que as amásias se enchem de coragem para a atitude máxima de estupidez. Após uma épica discussão com o patife, onde ele mais uma vez mentiu que vai sim abandonar a mulher assim que ela se recuperar da enésima síncope, a outra se desespera. Como que exigindo uma providência, procura pela titular para contar-lhe aquilo que ela fingia não saber. Drama, muito drama. E todo mundo perde. Quase ia me esquecendo, você quer que eu diga se aceito ou não. Mas ainda não terminei. Andei escutando que, em seus estudos, Jung teria afirmado que a capacidade de alguém manter-se fiel poderia ser considerada - veja bem - como a maior prova de sua sanidade mental. Achei graça pois, até onde eu sei, ele mesmo traiu sua senhora com uma paciente, o que me leva a pensar que Jung era muito, mas muito doido. Ou então que era dono de tanta lucidez que conseguia até mesmo reconhecer sua própria maluquice. Nesse caso, é possível que eu esteja precisando de terapia porque, embora respeite o bambambam da psicanálise, me vejo obrigada a discordar do doutor. Não te julgo um tantã, mas eu sei que você não vai passar o resto da vida me comendo. Quer dizer, vai, mas não só a mim. Não negue, por favor, que vai soar ridículo. Quem admite a realidade sim é que pode ser considerado um lúcido. Você me pediu em casamento. Eis as minhas condições. Fica combinado que o envolvimento com vínculos e cumplicidade é exclusividade minha. Escapadas fortuitas, com moderação e inteligência, vá lá. No seu retorno de viagens à Amazônia, Chile ou sei lá, Suazilândia, não farei perguntas que te obrigarão a mentir. Longe dos olhares conhecidos, faça o que tu queres, pois é tudo da lei. Jamais confesse coisa alguma e isso fica entre nós dois. Nada de perebas dentro de casa, você sabe o que fazer. Não dê seu telefone, nem e-mail. Sob muita insistência, invente. Pretendo nunca mexer em suas coisas, portanto não atice minha curiosidade: livre-se das evidências. Proteja-me do clichê patético, e farei o mesmo por você. A culpa transforma qualquer príncipe em um chato de galochas. Pelo meu próprio bem, desta eu te libero. Se você, mesmo assim, sentir-se culpado, leve-me numa viagem ao Tahiti. Pense. Se você achar que consegue conviver com a verdade, telefone dizendo que aceita.

11 de fevereiro de 2008

a morte viva

Estava lendo o encantador romance de Markus Zusak, A menina que roubava livros, quando percebi que havia interrompido a leitura e estava olhando para o nada, absorvendo os dizeres. A história se passa na Alemanha nazista, e conta com o mais interessante dos narradores: a morte. Mesmo assoberbada com a guerra, ela encontra tempo para acompanhar a vida do grupo de pessoas em torno da roubadora de livros. Falando de determinado personagem, ela diz que “se o matassem naquela noite, pelo menos ele morreria vivo”. Eu vou morrer. Você também vai. O senso comum afirma que todo mundo sabe que vai morrer, mas eu tenho minhas dúvidas. Se realmente soubéssemos que, cedo ou tarde, a danada vem mesmo nos visitar, acho que viveríamos de forma diferente. Não é à toa que existem tantos filmes relatando as atitudes que personagens – reais ou não – tomaram ao descobrir que têm uma doença e, com ela, muito pouco tempo. A verdade é que, por mais que a gente escute que vai morrer um dia, tentamos manter um certo distanciamento. É como acidente de trânsito, assalto, doença grave: acontece, mas com os outros. Conheço duas pessoas que estão separadas há mais de 20 anos. Casaram e não deu certo, ambos estavam infelizes com a relação. Corajosa, ela decidiu ir embora, levando consigo as duas filhas que tiveram durante os cinco anos em que estiveram juntos. Com uma mão na frente e outra atrás. Embora não admita, ainda hoje ele não a perdoa por tê-lo deixado. Criou em seu imaginário uma mulher devassa, mau-caráter, coisa ruim. Há duas décadas, esse é o seu assunto favorito – fulana é uma vadia; me arruinou, deu o golpe. Ela não é nada disso, mas não faria a menor diferença se ela tivesse mesmo um péssimo caráter ou se ele estiver apenas sendo injusto. O fato é que ele parou no tempo. Ao encontrá-lo em uma cafeteria, restaurante ou onde quer que seja, é dela que ele vai falar. Como todas as pessoas do mundo, ele tem problemas. A diferença é que ele acha que a culpa por todos os seus é da ex-esposa. Recusa-se a assumir que também foi responsável pela falência da relação e, com isso, também se nega a aprender alguma coisa. E segue sozinho, completamente fechado para o novo amor que poderia aparecer. Morreu, mas esqueceu de deitar. Fico pensando no que aconteceria se ele descobrisse que tem a tal enfermidade que permite reflexão antes da partida. Procuraria por ela? Perdoaria, reconheceria seus erros ou tentaria fazê-la sentir culpa? Parece que estou desejando que ele adoeça, e na verdade é quase isso mesmo. Há males que carregam a própria cura consigo. Durante a adolescência, uma amiga e eu falávamos que, já que é inevitável morrer, que seja de rir. Bem velhinhas, conversando com as amigas queridas, companheiras de uma vida inteira. Uma delas conta algo extraordinariamente engraçado, o que desencadeia uma crise de riso incontrolável e deliciosa. Puf! Morreu de rir. Seria uma morte abençoada, mas só para quem não carrega grandes arrependimentos. Não sei se existe alguém que não os tenha, mas penso que talvez uma morte anunciada fosse mais redentora. Pedir perdão, realizar sonhos, gastar o dinheiro que está parado na poupança, à espera de uma emergência. Urgente é pular de pára-quedas, conhecer a Tailândia, confessar um amor. Reparar um mal cometido, aprender a dançar, usar a louça cara todos os dias. Adoro uma música da banda porto-alegrense Acústico Reggae, que aconselha que se viva ao máximo seu presente, para não ter que correr atrás de seu passado. Não anseio por meu encontro com a morte, quero viver mais de cem anos. Mas quando morrer, eu quero estar bem viva.