11 de fevereiro de 2008

a morte viva

Estava lendo o encantador romance de Markus Zusak, A menina que roubava livros, quando percebi que havia interrompido a leitura e estava olhando para o nada, absorvendo os dizeres. A história se passa na Alemanha nazista, e conta com o mais interessante dos narradores: a morte. Mesmo assoberbada com a guerra, ela encontra tempo para acompanhar a vida do grupo de pessoas em torno da roubadora de livros. Falando de determinado personagem, ela diz que “se o matassem naquela noite, pelo menos ele morreria vivo”. Eu vou morrer. Você também vai. O senso comum afirma que todo mundo sabe que vai morrer, mas eu tenho minhas dúvidas. Se realmente soubéssemos que, cedo ou tarde, a danada vem mesmo nos visitar, acho que viveríamos de forma diferente. Não é à toa que existem tantos filmes relatando as atitudes que personagens – reais ou não – tomaram ao descobrir que têm uma doença e, com ela, muito pouco tempo. A verdade é que, por mais que a gente escute que vai morrer um dia, tentamos manter um certo distanciamento. É como acidente de trânsito, assalto, doença grave: acontece, mas com os outros. Conheço duas pessoas que estão separadas há mais de 20 anos. Casaram e não deu certo, ambos estavam infelizes com a relação. Corajosa, ela decidiu ir embora, levando consigo as duas filhas que tiveram durante os cinco anos em que estiveram juntos. Com uma mão na frente e outra atrás. Embora não admita, ainda hoje ele não a perdoa por tê-lo deixado. Criou em seu imaginário uma mulher devassa, mau-caráter, coisa ruim. Há duas décadas, esse é o seu assunto favorito – fulana é uma vadia; me arruinou, deu o golpe. Ela não é nada disso, mas não faria a menor diferença se ela tivesse mesmo um péssimo caráter ou se ele estiver apenas sendo injusto. O fato é que ele parou no tempo. Ao encontrá-lo em uma cafeteria, restaurante ou onde quer que seja, é dela que ele vai falar. Como todas as pessoas do mundo, ele tem problemas. A diferença é que ele acha que a culpa por todos os seus é da ex-esposa. Recusa-se a assumir que também foi responsável pela falência da relação e, com isso, também se nega a aprender alguma coisa. E segue sozinho, completamente fechado para o novo amor que poderia aparecer. Morreu, mas esqueceu de deitar. Fico pensando no que aconteceria se ele descobrisse que tem a tal enfermidade que permite reflexão antes da partida. Procuraria por ela? Perdoaria, reconheceria seus erros ou tentaria fazê-la sentir culpa? Parece que estou desejando que ele adoeça, e na verdade é quase isso mesmo. Há males que carregam a própria cura consigo. Durante a adolescência, uma amiga e eu falávamos que, já que é inevitável morrer, que seja de rir. Bem velhinhas, conversando com as amigas queridas, companheiras de uma vida inteira. Uma delas conta algo extraordinariamente engraçado, o que desencadeia uma crise de riso incontrolável e deliciosa. Puf! Morreu de rir. Seria uma morte abençoada, mas só para quem não carrega grandes arrependimentos. Não sei se existe alguém que não os tenha, mas penso que talvez uma morte anunciada fosse mais redentora. Pedir perdão, realizar sonhos, gastar o dinheiro que está parado na poupança, à espera de uma emergência. Urgente é pular de pára-quedas, conhecer a Tailândia, confessar um amor. Reparar um mal cometido, aprender a dançar, usar a louça cara todos os dias. Adoro uma música da banda porto-alegrense Acústico Reggae, que aconselha que se viva ao máximo seu presente, para não ter que correr atrás de seu passado. Não anseio por meu encontro com a morte, quero viver mais de cem anos. Mas quando morrer, eu quero estar bem viva.

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