8 de abril de 2010

noiva triste

Iara vai casar.
Era uma vez dois colegas de escola. Aos dezessete, já haviam trocado aneizinhos de plaquê ao som de rimas fáceis, calafrios, fura o dedo, faz um pacto comigo. Talvez seja uma pena que nos tornemos tão pragmáticos, mas a verdade é que, salvo alguns iluminados que já nascem com a vocação brilhando forte em suas testas, ninguém dessa idade sabe o que vai fazer com o resto de sua vida. Você sabia? Te invejo.
Nove anos depois, Iara vai casar. Flores, fitas e babados flutuam pelos ares dando o tom da ocasião enquanto mulheres estabanadas se alvoroçam em torno dela, tirando uma provinha do momento mágico alheio - afinal, casar é a coisa mais feminina que existe. A alegria reina sobre todas, exceto a protagonista. Iara está infeliz. E noiva triste é uma afronta.
Iara não faz segredo de que não gosta mais do noivo. Seu idiota, você não serve pra nada, mesmo! Mãe, cancela o buffet que não vai mais ter casamento! Vovó, devolve os presentes! Ao telefone e aos berros, ela diariamente segue o ritual de terminar tudo com ele. Já reparou que tem pessoas que só se relacionam brigando? Talvez você nunca tenha tido o azar de passar um feriado prolongado num sítio convivendo com gente assim, mas já deve ter notado que alguns casais são viciados em discutir em público. Estão sempre irritados um com o outro: tudo o que ela faz o deixa truculento, enquanto tudo o que ele diz a faz revirar os olhos com aquela expressão de affffff. Vivem trocando acusações que começam com “você sempre”, prontamente respondidas com “mas e você que nunca”. Acreditando que todas as atitudes do outro tem a intenção de lhes atingir, eles acham que o importante é ganhar a discussão, mesmo que isso signifique nunca resolver o problema que a gerou. Recentemente li Fernanda Young lamentar que é uma pena que os ouvidos não tenham pálpebras e lembro disso com frequência.Se ela se enrosca em outro cara ou se é tudo paranoia dele, não tem importância nenhuma; se o noivo é um babaca mesmo, não é o que faz a diferença, porque eles não estão se importando se isso vai terminar em divórcio ou no Linha Direta: vão casar mesmo assim. Encontrar um culpado é irrelevante quando se trata de dois adultos que não se entendem - dá nos nervos, e o ponto nevrálgico da questão é justamente esse: chega.
A relação se desgastou. Não confio em você. O amor acabou. Não superou uma traição. Não é amor. Você não é quem eu queria que você fosse. Usar o parceiro como bode expiatório é dar um tiro no próprio pé, pois se seu companheiro ficar infeliz, ele não será capaz de cuidar de você. Claro que todo mundo passa por fases turbulentas e é de se esperar que aqueles que estão por perto acabem pagando o pato; aliás, é isso mesmo que esperamos: queremos dividir o peso, ajudar a carregar, tornar a vida do outro mais leve - cuidar. Hoje estou em um relacionamento alegre e não penso em sair dele, mas se monstros como desconfiança, discussão e desrespeito povoassem o dia a dia desse convívio, eu optaria por seguir sozinha. Se existe alternativa, por que é que alguém preferiria se relacionar de forma concretamente doentia a uma vida solteira e potencialmente feliz?Gente, a Iara vai casar com um cara que ela detesta e eu não consigo entender. Cartas para a redação, por favor.



10 de março de 2010

pra sair

Caríssimos, esse texto é de 08 de janeiro de 2008, e as reportagens a que ele se refere naturalmente são dessa data, ok?




Leio, estupefata, uma pesquisa publicada pela Revista Veja onde os entrevistados eram questionados se, diante da onda de violência que enfrentamos hoje, seriam favoráveis à prática de tortura por parte da polícia. Inacreditáveis 54% dos entrevistados responderam que apóiam essa rotina. Eu, antes de ler o resultado, já ficaria revoltada com a simples de idéia de se fazer uma pergunta dessas. E não é que não escutei eco algum?
Dizem que o brasileiro sofre de amnésia. E talvez estejamos mesmo sofrendo de algum problema relativo à perda da memória recente, pois me parece que estamos completamente esquecidos dos horrores por que esse país passou durante a ditadura – nossos anos de chumbo, que hoje alguns ainda enxergam com um romantismo improcedente, quase indecente. Que me perdoem os mais romanescos, mas eu não vejo lirismo nenhum em morrer numa prisão, completamente sozinho, depois de haver passado meses sofrendo toda sorte de abusos físicos e psicológicos para, então, ser despejado em uma vala comum. Se não há corpo, não há crime. Portanto, não temos um assassinato, mas sim um desaparecimento. Romantismo puro.
Naquela época, por acreditar que se tratava de uma questão de segurança nacional, a opinião pública apoiou a caça aos subversivos. Até o momento em que o DOPS começou a levar embora seus filhos, irmãos e amigos; muitos, ainda hoje "desaparecidos". Dentre esses presos, alguns eram ativistas de fato, mas muitos eram grandes equívocos. A História mostra que o nome da Lei que vigora nas caças-às-bruxas é Paranoia.
Então eis que surge, menos de cinqüenta anos depois, um certo Capitão Nascimento, se erigindo como novo herói brasileiro. Um homem em pânico, fruto de uma situação histérica, que tem na tortura uma ferramenta de trabalho, tal qual um açougueiro precisa de seu facão. E a sociedade o adora, repete incansavelmente seus jargões engraçadinhos. O que, a meu ver, revela uma atitude favorável da opinião pública no que diz respeito à prática de tortura, por parte da polícia, na obtenção de informações úteis no combate ao tráfico de drogas nas favelas. Questão de segurança nacional. Fez a ligação entre os fatos?
Hoje, soldados sobem o morro para descer o cacetete nos moradores e usuário de drogas que eventualmente estejam por lá. Caso isso se torne uma prática de aceitação mais popular, é o que vai acontecer com você, toda vez em que estiver no lugar certo, na hora errada. Tem gosto de censura, mas é apenas um mal necessário, um remédio de sabor amargo. Não é? A tal pesquisa diz que sim.
Quem leu os jornais dessa semana ficou sabendo. Um grupo de garotos inocentes, sem nenhuma passagem pela polícia, foi covardemente torturado por um grupo de policiais em Flores da Cunha, interior da Serra Gaúcha. Tiveram suas cabeças cobertas por sacos plásticos e um deles chegou a ser empalado com um cabo de vassoura, enquanto as nobres autoridades chamavam-se por codinomes, zero um, zero dois, zero seis. Você já viu essa cena em algum lugar? Pois está acontecendo ao lado das nossas casas.
Se esses 54% dos entrevistados pela revista pensarem mais um pouco sobre o assunto e decidirem que preferem isso mesmo, eu não falo mais nada.
Aliás, falo só mais uma coisa: eu peço pra sair.

26 de fevereiro de 2010

mostra o pau!

Foi um papo de boteco. Amigos que gostam de barzinho e de retórica é uma combinação que resulta em horas ao redor da mesa do bar, debatendo tanto os mistérios mais misteriosos do universo quanto a novela das oito, como diria uma amiga minha. Outro dia, alguém saiu com essa: falar é prata, ouvir é ouro. “E omitir-se é bronze!”, outro completou. Conversa inflamada à vista - omissão leva medalha?
Você conheceu um cara que parece feito sob encomenda, de tão seu número que é. Ou talvez nem tanto assim, mas cairá como uma luva após alguns ajustes. Ô moça, aceita cartão? Então pode embrulhar, vou levar este aqui para casa. E você espalha o regalo sobre a cama, experimenta tudo de novo e, vendo como lhe cai bem, conclui que realmente fez boa compra. Mas, após algumas semanas de uso, descobre um defeito que não veio escrito na etiqueta. Não contei antes, o cara te diz, mas eu estou noivo.
Supondo sanidade mental, prefiro pensar que ninguém gostaria de se envolver com um homem comprometido. Politicamente correto? Sim, mas não só isso. Já falei sobre amantes uma vez,  são bastante patéticas. Homem casado, só se for meu marido. Mas aí você acabou de descobrir que o seu príncipe tem outra e que, na verdade, a outra é você. Suas amigas te dizem que "É uma cilada! Caia fora e não dê chance de apelação!", e você sabe que elas tem razão. Mas a verdade é que você está apaixonada e se perguntando "Como que é que vai ser agora?" Para quem está de fora, a resposta é óbvia. Quando você estava de fora, também era. Coisas do coração, a gente fica meio besta mesmo.
Ainda tem a mau-caratice de vocês dois. Sim, sua também. Agora que você sabe, é cúmplice. Logo você, que sempre foi tão boazinha, dizendo que nunca se meteria numa enrascada dessas. Markus Zusak falou de coisas que provam o quanto o ser humano é contraditório. Nas palavras dele, um punhado de bem, um punhado de mal. É só misturar com água. Talvez demore um pouquinho, mas se você for uma boa pessoa, vai acabar saindo dessa mistura nem um pouco fina.
Rabo preso, todo mundo tem. Se parássemos para pensar em quem somos nós para dizer alguma coisa, ninguém falaria mais nada. Claro que hipocrisia está por fora, mas somente a intencional. A verdade é que há momentos em que somos hipócritas sem querer, capturados em alguma armadilha que se escondia por trás das nossas melhores intenções. O nome disso é ironia. E era aqui que eu queria chegar: omissão não leva medalha, não.
Há quem esconda as regras do seu jogo como desculpa para errar depois; fica em cima do muro, é morno e será regurgitado. Eca. Melhor dizer que desta água nunca beberá, mesmo que a sede termine ditando novas regras no futuro.
Se falar é prata e ouvir é ouro, o bronze vai para assumir o que foi dito. Mesmo que sem sustentação nas atitudes presentes. Penso. Logo, mudo de idéia. Matar a cobra e mostrar o pau, como se diz na minha terra.

18 de fevereiro de 2010

festas da vida

Começa com o batizado. Você nem aí, só se manifestou porque jogaram água fria na sua cabeça - e, ironia, a festa era toda sua. OK, pode dormir, nos veremos nos aniversários com bolo e guaraná, muito doce pra você. Depois, nas quermesses escolares onde o vestiremos de caipira e pintaremos seus dentes com cajal preto.Nas festinhas de garagem, tum-tum, tum-tum, tum-tum. Meninos acuados de um lado, meninas aterrorizadas de outro. Love hurts, e o sofrimento desse ritual macabro de iniciação só vai passar quando você já estiver sentindo saudades do frio na barriga. Mas ainda falta algum tempo. As rosadas festas de quinze anos virão antes, com seus vestidos longos, gravatas divertidas e uma sensação iniciática de estar deixando de ser criança. Na verdade, aos quinze temos a firme certeza de já sermos adultos. O que nessa idade ainda ignoramos é que à medida que o tempo passa, vai ficando cada vez mais claro de que jamais deixaremos a infância e que esse negócio de crescer é uma tremenda enrolação: não acontece nunca.
Antes que você perceba, estará imundo e feliz. No período que acontece entre o banho de tintas do vestibular e a formatura, vem minha parte favorita. Baladas, saraus, botecos, jantares, gafieiras, micaretas e suas gentes bonitas, interessantes, divertidas, gente sóbria, gente ousada. Festejos para somente dois convidados. Festa estranha com gente esquisita. Passar o sábado à noite estudando também é uma chance de ver gente que se parece com você, desde que em grupos de estudos, preferencialmente mistos. É na mistura que acontece a graça, e fica ainda mais engraçado se alguém levar um Malbec.
Os sabores, aromas e texturas dos lugares só ganham sentido se somados às pessoas: viscerais, superficiais ou sensatas. Estão todos festejando, e quem não viu nada, perdeu. Quem viu, vai a despedidas de solteiro, chás de panela e, novidade, chás de lingerie. Casamento é coisa rara mas, caso você tenha decidido ficar na turma dos tradicionais, terá chance de testemunhar um tipo em extinção de festa, porque os noivados já eram - seus netos ainda vão lhe perguntar do que se trata.
Tão logo se acabem os chás de bebê, é chegada sua vez de retribuir o que lhe foi dado na tenra idade: lá vamos nós para os batizados. Desta vez, acordados. Era uma vez, nós lambuzados de brigadeiro e brincando de dança da cadeira. Agora corremos atrás das crianças, na tentativa de impedi-las de engolir a bala soft - quem diabos teve a ideia de servir bala soft em festa de criança?
Vovós (sim, suas amigas) farão oitenta anos em grande estilo e, com sorte, veremos algumas bodas. Que venham os velórios. Santé!

10 de fevereiro de 2010

o inverso

Deu no Terra: Happiness, uma nigeriana às voltas com os preparativos de seu casamento, incluiu em sua agenda um programão de dar inveja em qualquer um: passar seis meses freqüentando um spa, preparando-se para o enlace. Quem pode, deve cuidar de si - mente e corpo. Até aí, nada nos surpreenderia, não fosse o verdadeiro motivo que a levou a procurar serviço especializado. Relaxar? Emagrecer? Nada disso, engordar. E muito. Várias pessoas fazem isso, seja por recomendação médica, seja por senso estético. O curioso é que ela não está magra demais e, tendo a saúde em dia, está sobretudo contrariando seu médico: a despeito dos grandes riscos de sofrer um enfarto, prejudicar a circulação e tantos outros males, Happiness deseja tornar-se obesa.
O noivo, rico príncipe da tribo Efik, diz que não poderia desposar uma mulher que não fosse excepcionalmente pesada, pois isso colocaria seu poder e riqueza em dúvida ante seus famintos súditos; a obesidade de sua futura esposa consiste em prova irrefutável de que ele pode alimentar os seus. Em um país onde milhares morrem de inanição, estar excessivamente nutrido é símbolo de status.
Um embate entre aparência e saúde faz com que você perceba qualquer semelhança com alguma história conhecida? Pois não é mera coincidência. Não concordo que o bem-estar seja sacrificado por causa de um padrão estético, e qual é a diferença entre Happiness, a obesa princesa nigeriana, e as nossas leves, anoréxicas e lipadas princesinhas - a capa da Playboy, a apresentadora do programa infantil, a musa da novela das oito, a socialite? É manjado, mas está no out door, no telejornal, nas produções de Hollywood e da Disney também. A mensagem é clara: se quiser entrar para o clube das belas, amadas e desejadas, quanto mais magra, melhor. Aí mulheres que até então eram saudáveis, vão parar na mesa de cirurgia por que julgam ser necessário parecer-se com quem quer que esteja nas capas das revistas do mês. Perseguindo uma beleza que não é a nossa, prejudicamos nossa saúde e passamos fome por que desejamos a perfeição.
Na Nigéria, quem tem o que comer também modifica seus hábitos alimentares e se empanturra pelo mesmo motivo: sentir-se bonita.
Para nós, discípulas da Barbie, a cena é idílica: você já abriu o primeiro botão da calça jeans após o rodízio de pizza, quando sente remorso pela quantidade que comeu. Então, sob os protestos das amigas, que juram que você está ótima, avisa: ah, meninas, estou de dieta, vou ter que comer mais um pedaço, não tem jeito. Garçom, traz um chá de boldo para ajudar a descer, por favor.
Tenho algumas amigas que, por motivos errados, estão querendo morar na África.

7 de janeiro de 2010

carta aos que ficaram

Pois é. Eu havia prometido enviar notícias com frequência. Lá se vão trezentos dias desde a minha partida e ainda não cumpri minha promessa. Não pensem que isso é descaso, nada disso. Eu poderia – deveria? – explicar, mas os amigos dirão que não precisa e os outros são do time que só escuta o que quer escutar.
As coisas aqui na Terra da Garoa não estão saindo exatamente como planejei, mas também não há motivo para pânico - é nos imprevistos que acontecem as situações que depois entram nas biografias.
Antes de encaixotar a mudança eu havia decidido quais coisas seriam fáceis e quais coisas seriam difíceis na minha vida nova. Quando estava me mudando, fui avisada de que as frustrações são do tamanho das expectativas e, pouco depois de eu ter me estabelecido aqui, a amiga que deu esse conselho veio me visitar. Ao telefonar para avisar que estava embarcando, ela perguntou o que faríamos à noite. Respondi “vamos a um ‘churras’ na casa de uns amigos”. Ela respondeu um “ah” meio desanimado e eu fiquei pensando qual seria o problema. Mais tarde, entendi: talvez ela esperasse algum programa mais... paulistano.
Fernanda Montenegro, em recente entrevista à Folha de São Paulo, falou lindamente sobre um determinado conceito de liberdade e arrematou com a pergunta “até onde você se aprisiona na sua consciência ou na sua neurose?” Ou seja, até que ponto você se mantém preso a um conceito que, evidentemente, não serve mais? Se o cenário está diferente do que você achava que deveria ser, está na hora de passar o projeto a limpo, cortar as arestas e se adaptar. Passado o primeiro susto, é hora de traçar caminhos possíveis.
As coisas óbvias de São Paulo me incomodam pouco: ah, o trânsito! Eu sabia que seria ruim, então me dispus às coisas piores. Claro que quando alguém se atrasa para um compromisso comigo por causa das quilométricas filas de engarrafamento, nem meditação resolve. Mas quando sou eu quem está presa nele, andando como quem leva um jaboti para passear, evito desperdiçar esse tempo: aproveito para ler, escutar uma música gostosa... e hoje, estou escrevendo.
Eu havia pensado que a poluição seria um problemão – sempre que eu estava de passagem, a danada fazia meu nariz doer – mas aconteceu que, na maior parte do tempo, nem a percebo. Triste notícia: me acostumei.
Pobreza me incomoda aqui, aí no Sul e em todos os lugares do mundo. Em alguns dias, me pego furiosa por achar que deveria estar ganhando mais e acumulando mais coisas, só para em seguida me sentir a mais frívola das criaturas ao perceber que tenho até demais, se comparada a alguns trabalhadores de rua. A sensação piora quando noto, um pouco envergonhada, que o quanto sou capaz de gastar numa única noite de boteco é mais do que eles acumulam em um dia inteiro. Nessas horas, lembro de ser um pouco mais grata à sorte que tenho.
Eu li em algum lugar que uma das maiores riquezas que um viajante pode encontrar em sua jornada é descobrir que o tesouro estava enterrado no quintal de casa. Concordo, se for porque um tesouro ficou aí; mas me reservo o direito de continuar cavando.
Simone de Beauvoir, em uma carta a Nelson Algren, disse que “Paris tem seu charme, desde que não se procure aqui por Chicago”. Decidi procurar por São Paulo em São Paulo - há de funcionar. Até por que o churrasco deles não se parece nem um pouco com o nosso.

30 de janeiro de 2009

mais feliz

Não anda muito fácil ser feliz. Desconheço se você se importa com o que está acontecendo na Faixa de Gaza, na África ou em nossas favelas; se você dá bola para o fato de que lidamos com nossos relacionamentos como se fossem garrafas pet. Que não importa quanto de dinheiro que conseguirmos ganhar, nunca será o bastante. Talvez você não se importe, mas estamos perdendo as crianças de vista - alguém aí lembra da música?

Para quem se importa, a felicidade é um ato de bravura. Para quem não está nem aí, é um ato de irresponsável insanidade que, mesmo assim, contribui para a alegria geral da nação. Do bairro, da casa, da cama. Reclamar, todo mundo nasce sabendo e, por isso, rendo honras a quem tem a ousadia de se comprometer em ser feliz a despeito deste mundo cão em que vivemos - o único mundo de que podemos dispor neste momento. Pode não ser perfeito, mas é nosso. Terráqueos, uni-vos!
Elizabeth Gilbert escreveu, em seu Comer Rezar Amar, que “em um mundo de desordem, desastre e fraude, algumas vezes só a beleza merece confiança”. A palavra beleza, neste trecho, refere-se à maneira como, segundo ela, os italianos decidiram criar alegria: uma soma da gastronomia às belas artes da Itália, em contraponto ao corrupto panorama político daquele país. Alguma semelhança com o lugar em que vivemos?
Compromete-se em ser feliz aquele que não desiste de um sonho só porque ficou difícil no meio do caminho. Seja um plano de carreira, uma história de amor ou um concurso de dança - não existe sonho grande e sonho pequeno: o sonho é seu e merece respeito. Está comprometido com sua felicidade aquele que sabe que cada um dá aquilo que tem, e que se alguém respondeu de forma ríspida a uma tentativa sua de ser legal, isso não tem nada a ver com você. É como Dé, Bebel e Cazuza cantarolavam: por um segundo mais feliz...
Comprometimento em ser feliz também inclui a determinação em não ferir aqueles que te amam. Se você não resistiu às fartas coxas daquela morena e depois se arrependeu, faça o favor de não fazer um confessionário do ouvido daquela a quem você traiu - vê-la chorar em desespero não aplacará sua culpa. Uma mulher feliz fará muito mais por você do que uma mulher ressentida. Intuo que se você se tornar uma pessoa melhor e cuidar da eleita com ainda mais gentileza, há de funcionar melhor: todo mundo feliz.
Recusa-se à infelicidade quem fecha a torneira enquanto ensaboa a louça, separa o lixo corretamente e não fura a fila do cinema; devolve o troco a mais que recebeu na farmácia, faz trabalho voluntário e escreve textos pedindo para que os outros tentem ser um pouco mais felizes.
Ter amor pode até ser uma questão de sorte, mas ter sorte é uma questão de humor. Humor-próprio. Sorte é uma maneira de encarar a vida, sendo generoso consigo mesmo e com as merdas que te acontecem. Choveu na praia? Que sorte menina, não levou um torrão! A saúde do seu estômago agradece.
Enquanto é improvável que se possa escolher as circunstâncias que nos cercarão, ainda é viável eleger uma maneira de viver apesar de – cercando-se de boa música, envolvendo-se com algo honrado ou simplesmente, como diz uma amiga minha, colocando as lentes cor-de-rosa. No século XIII, Rûmî – místico poeta do sufismo - deixou escrito que “para mudar a paisagem, basta mudar o que sentes”. Pensando nisso, lembrei da Roberta Sá: que belo estranho dia para se ter alegria. Não é mesmo?

29 de dezembro de 2008

crônica pascalina escrita no natal

Era uma vez três princesas ao redor da mesa. Uma solteira, uma casada e uma divorciada. Duplamente divorciada. A Quilmes estava bem gelada, o que facilitava a risada e a conversação que versava da alta à baixa filosofia. Aviso de antemão que a alta ficará de fora desta crônica. No que concerne à baixa, basta que você já tenha bebido cerveja enquanto conversava alguma vez na vida: falar da vida alheia, da novela ou do futebol. De sexo. O seu e o oposto. A esse respeito, a casada diz que até tem alguma sorte e a divorciada, que o amor é uma doença. Mas aquela que ainda não casou mostra-se inconformada. Como assim, sorte e doença? Com ar de desafio, questiona: e os casais que eu vejo dando certo? O instante seguinte foi de silêncio, enquanto as outras duas, atordoadas, a fitam com incredulidade: o quê, você acredita no Príncipe Encantado? Envergonhada, a solteira baixa o olhar, na tentativa de esquivar-se do olhar da perplexidade de suas amigas, mas acaba admitindo sua indecência: é, eu acredito. As outras duas entreolham-se, e o balançar negativo de suas cabeças dispensa palavras para dar o veredicto: coitada.

Griladas, as princesinhas modernas acreditam em Papai Noel. Em Príncipe Encantado, não. Sinal dos novos tempos, onde quase tudo é descartável – comprou, não gostou, levou no Procon. Usou, cansou, devolveu. Mas ali, em torno daquela mesa, havia uma dissidente.
Aconteceu mais ou menos assim: madrugada entre o Sábado de Aleluia e a Páscoa. Ela acordou precisando ir ao banheiro. Lembrou das recomendações da mãe, para que não saísse do quarto até que o dia raiasse, afim de não espantar o Coelhinho. Naturalmente, aquela situação caracterizava uma emergência, e o Coelhinho que entendesse. Quem provavelmente não entenderia era sua irmã mais jovem, que dormia profundamente na cama ao lado e não a perdoaria sob circunstância alguma caso sua cestinha amanhecesse vazia por causa de uma imprudência da primogênita. Mas era uma emergência, fazer o quê?
Levantou, o mais silenciosamente possível, e foi pé por pé até o banheiro. Saindo de lá, percebeu uma luz acesa na sala. "Céus, a mamãe esqueceu de apagar a luz! Vai espantar o Coelhinho!" Determinada a salvar a tradicional caça-ao-chocolate das manhãs de Páscoa, ela esgueirou-se pelo corredor. O interruptor estava próximo, agora. Bastava esticar-se um pouquinho mais e... Não acredito! Mamãe? O que você está fazendo agachada aí, com esse pote de farinha na mão? Pegadas em forma de patas de coelho? Mas... não era o próprio Coelhinho quem deveria deixá-las aí pelo chão, não? O quê, você é ajudante dele? Ah, mãe, conta outra! Eu já tenho sete anos, você não acha que vou cair nessa, né? Você vai querer me convencer de que é ajudante do Papai Noel, também? Fala, pode falar que eu agüento! Sim, eu prometo que não falo nada pra mana. Pro-me-to, já falei. Eles não existem, né? Affff, tudo bem. É o espírito que conta, entendi. Não, não se preocupe, eu estou bem. Vou voltar pra cama antes que a mana perceba. Não queremos estragar a Páscoa dela, não é mesmo? Tudo bem mãe, um dia eu ia acabar descobrindo, foi melhor assim - pelo menos, quem me contou foi você. Também te amo. Boa noite.
Mas ela não pôde dormir. Em tão tenra idade, sofria sua primeira noite de insônia causada por um turbilhão de pensamentos. A primeira de muitas e, dentro de algum tempo, viria a descobrir o significado de "Penso. Logo, não durmo". Revirou-se na cama, sentindo-se perseguida por uma questão que havia faltado fazer à mãe. Percebendo que não conseguiria descansar enquanto a dúvida a perseguisse, decidiu levantar-se novamente. A luz da sala estava apagada, o que significava que a mãe já havia terminado suas funções como ajudante de Coelho da Páscoa e ido dormir. Mas não dava para esperar. Caminhou até o quarto onde a genitora descansava de seus afazeres, serenamente. A garota não sentiu pena. Mamãe? Mamãe acorda, por favor. Não, não estou com dor de barriga, estou sem sono. Não consigo mais dormir por causa do que aconteceu hoje. Preciso de ajuda. Você está bem acordada? Vendo que a mãe estava agora totalmente desperta e sentada na cama a fitar a filha, ela prosseguiu: é muito sério. Eu entendi que o Coelhinho não existe, que o Papai Noel não existe, falei que estava tudo bem e realmente está. O que eu preciso saber mamãe, é muito mais importante que o espírito natalino. Percebendo o medo da resposta que estava prestes a escutar, sentiu um nó na garganta, mas tomada pela coragem que só temos aos sete anos, prosseguiu: ele também não existe, mamãe? O Príncipe Encantado também não existe?
A menina cresceu, virou princesa e foi pro bar beber Quilmes com as amigas. O resto você já sabe.

3 de dezembro de 2008

carta de despedida

Você precisa ir embora. Não, por favor, sem lágrimas. Eu também amo você, mas precisamos ter maturidade para saber quando não dá mais. Sempre soubemos que esse dia chegaria. Chegou. Sejamos adultos.
Durante esse período, fomos felizes, não fomos? Você e eu. No primeiro dia do ano, fomos assistir juntos ao nascer do sol. É verdade que peguei no sono e acordei com o sol a pino, mas o importante é que estávamos unidos. Tínhamos tudo pela frente, esperança e possibilidade. Aproveitamos cada um dos segundos a que tivemos direito, ao som das ondas do mar.
Passamos noites maravilhosas em claro. Rolamos na cama, lambuzados da alegria em termos um ao outro, em sermos donos daqueles momentos únicos. Acredite, foram únicos sim. Jamais esquecerei o que vivemos: eu vinha seguindo por um caminho que não me faria feliz, e foi ao seu lado que percebi o quanto era urgente modificar meu rumo. Você nunca me negou apoio. Pelo contrário, você foi meu propulsor, meu amante e meu ombro amigo nos raros momentos em que quase fraquejei.
Sim, concordo que estou sendo egoísta, mas você sabe que não pode vir comigo. É preciso seguir em frente – você me fez mulher, mas não foi o primeiro, e, felizmente pra mim, não será o último.
Nós dois temos muitas coisas em comum; sem dúvida que a fome de rodar o mundo é a maior delas. Decidimos que iríamos embora desse lugar juntos, munidos apenas da coragem com que, então, nosso amor nos alimentava. Fizemos planos. Foi numa manhã de março, lembra? Naquele dia fez sol, choveu forte e depois surgiu um arco-íris, que acreditamos ser um bom presságio. Cumprimos com tudo o que combinamos - preparamos-nos a contento, traçamos metas realistas e também contamos com a sorte. Embora eu tenha desejado profundamente realizar esse sonho ao seu lado, percebo agora o que é que essa tal sorte reservara-me de fato: eu vou com outro e não com você.
Passamos por uns maus bocados também. Depois de abril, as coisas ficaram pesadas para o nosso lado. Havia muito que fazer, tivemos que correr como loucos para que nossos planos se concretizassem. Dividimos-nos entre dezenas de tarefas simultâneas, por causa dessa nossa vontade de fazer tudo em conjunto. Quase conseguimos, não é mesmo? Se hoje é preciso adiar nosso projeto por um breve período, não é nossa culpa, embora seja por causa dessa fatalidade que não poderemos permanecer juntos enquanto eu cruzo a linha. Dentro de alguns dias, você será passado e eu não olharei para trás, levando comigo somente as coisas boas.
Eu sinto muito orgulho de você. E sei que você também se orgulha de mim. Juntos, ascendemos ao topo do pódio. Mais de uma vez. Demos risada, pegamos a estrada, dançamos até que os joelhos doessem. Falamos sobre tudo enquanto tomamos alguns porres, embriagados de amor. Formamos uma grande dupla. Bom trabalho, meu querido. Bom trabalho.
Por favor, não pense que enfrento nossa separação sem dor nenhuma. Eu tenho sentimentos, como você sabe tão bem. Está doendo um pouco. É muito difícil abandonar quem me fez tamanhamente feliz, quem me mostrou como usar a força interior que eu sempre tive, mas que não utilizava de todo porque vinha guardando para quando precisasse. Você me ensinou que quanto mais a uso, mais forte me torno. Por isso, e por tantas outras coisas inesquecíveis, te amarei infinita e indefinidamente. Muito, muito obrigada por tudo.
Adeus, 2008. Foi incrivelmente bom, enquanto durou.